Chomsky vs. Žižek

Trocam diatribes pela internet Noam Chomsky e Slavoj Žižek. Ainda com pouca repercussão no Brasil, a troca de farpas circula como um viral – em inglês e já em outros idiomas – por redes sociais, blogs e até a mídia convencional. Para os desavisados, estamos já no terceiro round e a iniciativa está com o filósofo esloveno.
Na primeira rodada, o linguista norte-americano, com dezenove títulos publicados (conquistados?) no Brasil, basicamente acusou Žižek de ser um charlatão. Em entrevista ao programa de rádio Veterans Unplugged, dos EUA, concedida em dezembro de 2012 (em inglês, aqui, a partir de 4:45), Chomsky disse:
Quando digo que não tenho interesse em teoria, o que quero dizer é que não me interessa quem faz pose — quem usa termos sofisticados cheios de sílabas e pretende ter uma teoria quando não tem teoria alguma. [...] Não há teoria em nada disso [a filosofia de Lacan, Žižek e Derrida], não no sentido de que estão acostumadas as pessoas nas ciências e outros campos sérios. Tente encontrar em todo o trabalho que mencionou princípios a partir dos quais possa deduzir conclusões, proposições que se pode testar empiricamente, em que se vai além do nível que uma criança de doze anos pode entender em cinco minutos. Veja se consegue encontrar isso quando os termos sofisticados forem decodificados. Eu não consigo. Então não tenho interesse nesse tipo de pose. Žižek é um exemplo extremo disso. Não vejo o menor interesse no que diz.
A distinção entre aqueles que fazem “pose” (no original, posturing), com jargões rebuscados, e a teoria científica remete a uma crítica importante na esquerda. Foi elemento central num debate televisionado que opôs Chomsky e o filósofo francês Michel Foucault, em 1971 (disponível aqui). Está no severo diagnóstico de Perry Anderson, em seu clássico Considerações sobre o marxismo ocidental, sobre a esquerda europeia a partir da Segunda Guerra Mundial, que, segundo Anderson, iniciou uma nova configuração intelectual, divorciada da prática política e do entendimento do materialismo histórico como “ciência”. Levou ao surgimento do grupo do No-Bullshit Marxism [o marxismo sem abobrinhas, para ser educado], uma escola influenciada pela filosofia analítica que, importante nos anos 1980, propôs a pesquisa das preocupações clássicas do marxismo a partir dos métodos científicos ditos burgueses, rejeitando a dialética como fundamento próprio da investigação materialista histórica. Na fala de Chomsky, Žižek aparece então como um seguidor da tradição de esquerda continental – em referência à Europa menos a Inglaterra, analítica –, em sua linha de questionamentos ontológicos (Bem-vindo ao deserto do real!), de retomada da dialética (Menos que nada), sobre o ser como abstração, o Real não alcançável. Noto que Žižek está longe de reivindicar o pós-estruturalismo, pelo contrário. De todo modo, para Chomsky a filosofia do esloveno é charabia, à francesa – liberdade minha, na medida em que o inglês bull-shit já foi tomado –, especialmente porque o real é passível de ser observado e apreendido empírica e concretamente.
A segunda rodada, a resposta de Žižek, ocorreu em 12 de julho de 2013, numa mesa-redonda organizada pela Escola de Verão de Teoria Crítica de Londres, com a participação de Costas Douzinas, Stephen Frosh, Esther Leslie e Laura Mulvey, além do filósofo esloveno. No debate (disponível aqui, a partir de 1:30:18, em inglês), num salto a partir de uma discussão sobre mitologia grega, aliás tipo de salto característico das conexões rápidas e inesperadas de sua obra, Žižek afirma:
O que está havendo com a universidade, Chomsky etc.? Com todo o respeito que tenho por Chomsky, minha primeira colocação é que, apesar de sempre enfatizar que se tem de ser empírico, preciso, não um lacaniano maluco cheio de especulações etc., [...] não há ninguém que eu conheça que tenha estado mais errado empiricamente [do que Chomsky]. Lembro quando ele defendeu a manifestação do Khmer Vermelho. E escreveu alguns textos dizendo: “Isso é propaganda ocidental. O Khmer Vermelho não é tão horrível”. Depois, quando teve de admitir que o Khmer Vermelho não era o pessoal mais bacana do universo, sua justificativa me chocou. Foi: “Com os dados de que dispunha no momento, eu tinha razão. Até aquele momento, não sabíamos o suficiente, então…”. Rejeito cabalmente esse tipo de raciocínio. Por exemplo, em relação ao stalinismo. A questão não é que se tem de saber, que se tem uma evidência fotográfica do gulag ou algo do gênero. Pelo amor de Deus, basta ouvir o discurso público do stalinismo, do Khmer Vermelho, para saber que há algo terrivelmente patológico aí. Por exemplo, o Khmer Vermelho: mesmo sem qualquer dado sobre suas prisões etc., não é de maneira perversa quase fascinante um regime que nos primeiros anos se comportou em relação a si mesmo como sendo ilegal? O regime não tinha nome. Era chamado Angka, uma organização – não Partido Comunista do Camboja, mas uma organização. Os líderes não tinham nomes. Se você perguntasse “Quem é meu líder?”, era decapitado sumariamente.
Minha segunda colocação sobre Chomsky [diz respeito] à consequência dessa atitude do empírico etc., o que é minha diferença fundamental com ele [...], a sua ideia de que o cinismo das pessoas no poder é tão aberto que não precisamos de uma crítica da ideologia [...]. Basta trazer os fatos às pessoas, do tipo “Essa empresa está se aproveitando da situação no Iraque” etc. e discordo fortemente disso. Primeiro, mais do que nunca a vida cotidiana é ideologia. Como se pode duvidar disso quando o Paul Krugman mesmo publicou um texto relativamente bom demonstrando que a ideia de austeridade nem é uma boa teoria econômica burguesa?! [...] Segundo, os cínicos são aqueles que mais tendem a iludir-se. Os cínicos não enxergam as coisas como elas são etc. [...]
Em relação à popularidade, fico um pouco incomodado com a ideia de que nossos sofismas são hegemônicos nas humanas. As pessoas estão malucas? Somos sempre marginais. O que é para mim a hegemonia acadêmica: é brutal. Quem consegue vagas nas universidades? Quem consegue financiamentos, fundações etc.? Somos totalmente marginais aqui. Olhe para mim: “Sei, você é uma estrela nos Estados Unidos”. Bem, eu gostaria de ser, pois gostaria do poder para usá-lo brutalmente. Mas estou longe disso. [...] A vasta maioria dos acadêmicos é composta de cognitivistas e historiadores grisalhos… Não os vemos, mas são o poder. E por que estão preocupadas as pessoas no poder? Não dá para exagerar a paranoia esquerdista de que “podemos todos ser recuperados” etc. Não! Ainda acredito ingenuamente na eficiência do pensamento teórico. Não é tão simples quanto recuperar tudo. Há várias estratégias diferentes de conter-nos. Posso não ser inocente nisso, porque as pessoas gostam de dizer sobre mim: “Vá e escute-o, é um palhaço que diverte…”. É outra forma de dizer: “Não o leve a sério”.
Alguns aspectos em relação à resposta de Žižek, descontada a verve açoitadora: (1) para além da provocação em torno da obra de Chomsky – que diz respeitar e desrespeita –, revela a suposta falácia enunciativa do empiricismo. Assume apose de quem pretende que a realidade seja cognoscível para mostrar que, segundo ele, esse conhecimento depende necessariamente das predisposições de quem faz o diagnóstico, da simbolização das evidências do real. De certo modo, defende sua filosofia, tachada de não teórica no sentido científico, exagerando a voz de quem o ataca e revelando-se mais empiricista do que aquele que “sempre [enfatiza] que se tem de ser empírico, preciso, não um lacaniano maluco cheio de especulações”. (2) O empiricismo tal qual postulado em sua forma absolutizada é visto por Žižek como uma rejeição da ideologia, que, na referência a Krugman, revela a possibilidade de realizar-se pela articulação política da ilusão aquilo que é teoricamente rejeitado nos próprios parâmetros estabelecidos pela teoria e que se manifesta como próprio sustentáculo da ilusão. (3) A autorreferência do trecho final serve para revelar a manifestação do outro lado: a brutalidade do empiricismo, hegemônico para Žižek, em relação àquilo que é marginal. O Žižek descrito, passível de ser brutal, portanto perigoso, é o objeto sublime dos empíricos absolutos, construído para justificar a contenção e a ridicularização do pensamento não hegemônico e com o qual se estrutura o parâmetro para se julgar a ciência. Seguindo a definição do psicanalista Christian Ingo Lenz Dunker, em “Žižek: um pensador e suas sombras” (disponível aqui), “a fantasia ideológica não se opõe à realidade, mas estrutura a própria realidade social. O problema reside em saber o que, em cada momento, precisa ser excluído da realidade para que a própria realidade se mostre consistente”.
Chomsky, na terceira rodada, tomou Žižek ao pé da letra e o rebateu de maneira científica. Publicou em 21 de julho, com o nome “Fantasias”, no site ZNet(disponível aqui, em inglês), uma longa resposta à provocação de Žižek, da qual extraí apenas alguns trechos:
Li com certo interesse [o comentário de Žižek a meu respeito], esperando aprender algo [...] e encontrar erros que devessem ser corrigidos – tais erros existem em possivelmente tudo o que é impresso, mesmo monografias técnicas acadêmicas, bastando ler as resenhas nas publicações profissionais. Quando os encontro e sou informado sobre eles, corrijo-os.
Mas não aqui. Žižek não encontra nada, literalmente nada, que esteja errado empiricamente. Isso não me surpreende. Qualquer pessoa que alega encontrar erros empíricos e é minimamente sério apresenta pelo menos alguns elementos de evidência – alguma citação, referência, pelo menos algo. Mas não há nada aqui – o que também não me surpreende. Já li sobre o conceito de fato empírico e argumento lógico de Žižek.
Por exemplo, na edição de inverno de 2008 do periódico cultural alemão Lettre Internationale, Žižek me atribuiu um comentário racista sobre Obama, feito por Silvio Berlusconi. Eu o ignorei. [...] Um editor da revista Harper’s, Sam Stark, se interessou e foi atrás da história. Na edição de janeiro de 2009, revelou o resultado de sua investigação. Žižek disse que baseava a atribuição a algo que tinha lido numa revista eslovena. Uma fonte maravilhosa, se é que existe. E, continuava, atribuir-me um comentário racista sobre Obama não é uma crítica, porque deveria ter feito esse comentário como “uma caracterização plenamente aceitável em nossa luta política e ideológica”. Deixo a quem quiser que decodifique essa frase. [...]
[Em seu comentário sobre o Khmer Vermelho], Žižek está provavelmente se referindo a um trabalho em conjunto com Edward Herman nos anos 1970 (Political Economy of Human Rights) e uma década depois em Manufacturing Consent, em que revimos e respondemos às críticas às quais Žižek está aparentemente se referindo. Em PEHR, discutimos vários exemplos da distinção de Herman entre vítimas dignas e indignas. As vítimas dignas são aquelas cujo fim pode ser atribuído a um inimigo oficial, as indignas são as vítimas de nosso próprio Estado e seus crimes. Nossos dois principais exemplos foram o Camboja sob o Khmer Vermelho e a invasão do Timor Leste pela Indonésia, nos mesmos anos. [...] As vítimas do Khmer Vermelho são “dignas”, pois seu fim pode ser atribuído a um inimigo. Os timorenses são “vítimas indignas”, porque somos responsáveis por seu fim: a invasão indonésia foi aprovada por Washington e apoiada mesmo nas piores atrocidades, identificadas como “genocidas” por uma investigação posterior da ONU, mas com ampla evidência naquele momento, como documentamos. Mostramos que os dois casos eram mentiras incríveis, numa escala que teria impressionado Stalin, mas em direções opostas: no caso do KV, fabricação de supostos crimes, condenações requentadas após serem rejeitadas etc. No caso do TL, diferentemente, no geral silêncio ou até negação.
Os dois casos não são, claro, idênticos. O caso do TL é incomparavelmente mais significante, pois as atrocidades poderiam ter sido facilmente encerradas, como finalmente foram em setembro de 1999, basicamente por uma indicação de Washington de que o jogo tinha acabado. Em comparação, ninguém tinha qualquer proposta sobre o que fazer para parar as atrocidades do KV. [...]
Escrevemos que não temos como saber todos os fatos, mas sugerimos que os comentadores são confiáveis e que atentam para o registro documental e reconhecemos os observadores qualificados, em especial o Departamento de Estado dos EUA, sabidamente a fonte mais confiável. O capítulo, além disso, foi lido pela maioria dos principais acadêmicos do Camboja antes da publicação. A falta de erros não é uma grande surpresa. [...]
Como o leitor pode determinar, Žižek não oferece a menor evidência para apoiar suas denúncias, apenas repete o que ouviu – ou talvez leu num jornal esloveno. Não menos interessante é o choque de Žižek sobre termos usado os dados que estavam disponíveis. Ele rejeita “cabalmente” esse procedimento. Não é preciso comentar tamanha irracionalidade. [...] Uma questão permanece sobre por que esse tipo de performance é levado a sério, mas deixo isso de lado.
A resposta de Chomsky é uma defesa precisa do proceder científico: a elaboração teórica (a hipótese sobre os dois tipos de vítimas, tomando como variável explicativa a participação de Washington), o teste empírico a partir dos melhores dados disponíveis (não há dados perfeitos e a falta de dados perfeitos não tem de impossibilitar a descoberta e o teste de hipóteses, apenas tem de se levar em conta de maneira transparente as imperfeições do que foi observado como elemento para provar ou rejeitar a teoria proposta), a disponibilização do argumento à crítica. O proceder científico leva à rejeição do que Žižek diz sobre Chomsky, testado com base no que Chomsky acredita ser o melhor dado disponível, já que Žižek não cita suas fontes, tomando o enunciado do filósofo esloveno como teoria testável e testada. Conclusão: “Žižek não encontra nada” e, portanto, Žižek é uma teoria falsa, uma performance que surpreende por ser levada a sério.
A verborragia exagerada do filósofo esloveno e sua rejeição displicente de uma das principais linhas de investigação crítica das últimas décadas do século XX, em torno de Manufacturing Consent, incomodam, para bem e para mal. Incomodaram Chomsky, levando-o a pôr o foco de sua resposta na empiria – no valor de seu trabalho – e a não considerar elementos pertinentes e propositivos da crítica de Žižek, como os que citei acima. Isso deixa o debate em certo impasse, com uma fresta na interlocução. Criado o impasse, acentuam-se as marcações de campo, evidentes nos comentários, das personalidades da esquerda aos interessados no debate, perguntando de que lado se está, à espera da quarta rodada, “Chomsky vs. Žižek”.
É no alvoroço e na espetacularização que o debate se torna desinteressante, desapegado da prática política, bullshit, nem chomskyano nem žižekiano. E, assim, prefiro responder à mesma pergunta, sobre os lados, entoada em outro contexto – no título de uma música folk norte-americana, escrita por Florence Reece em 1931 e conhecida principalmente na versão de Pete Seeger, de 1967:Which Side Are You On? “Não há pessoas neutras aqui/ Ou se é mineiro/ Ou se é capataz da J. H. Blair [milícia organizada por uma mineradora que perseguiu a família de Reece]”.
P.S.: Em 25 de julho – um dia após o envio deste post para publicação –, Žižek postou uma resposta a Chomsky no blog da editora Verso (disponívelaqui, em inglês).
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Na esteira dos recentes embates urbanos que abalaram o país, a Boitempo prepara um novo livro de intervenção, Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, inspirado nos megaprotestos das últimas semanas. A obra, editada em parceria com o portal Carta Maior, segue a linha do livro Occupy – movimentos de protestos que tomaram as ruas, com o mesmo formato e preço (R$10,00 o impresso, R$5,00 o e-book). Participam dessa coletânea autores nacionais e internacionais, como Slavoj Zizek, David Harvey, Mike Davis, Raquel Rolnik, Ermínia Maricato, Jorge Souto Maior, Mauro Iasi, Silvia Viana, Ruy Braga, Lincoln Secco, Leonardo Sakamoto, João Alexandre Peschanski, Carlos Vainer, Venício A. de Lima, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira. Paulo Arantes e Roberto Schwarz assinam os textos da quarta capa.
Além de analisar a conjuntura política e social, o lançamento pretende contribuir com o debate iniciado pelo Movimento Passe Livre (MPL) – que também participará com um artigo –, ajudando a consolidar suas bases teóricas e práticas. Os principais temas abordados são o direito ao transporte público e à cidade, a violência nas manifestações, partidarismo, luta política e democracia. O livro também conta com ensaio fotográfico do coletivo Mídia NINJA e a previsão é de que chegue às livrarias no dia 2 de agosto.
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João Alexandre Peschanski é sociólogo, editor-adjunto da Boitempo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.